Por Benedito Franco
058 - A Guerra
Em Congonhas, MG, os estudantes passávamos as férias numa Casa de Campo, aos pés da Serra de Ouro Branco, um paredão colossal de pedra - emoldura um dos lados da cidade de Ouro Branco.
Dois padres acompanhavam-nos: o Padre Diretor ou o Padre Sócio, tipo vice-diretor, responsável direto pelos internos, e um professor - companhia para o padre e para nós, alunos. O professor que mais gostávamos que nos acompanhasse, um holandês simpaticíssimo, magro e alto, muito branco, com um bom português. Regente dos coros, o diretor do teatro - além de dirigir as peças, mostrava-se um grande artista, pintava os cenários - ajudava-o. Meu professor de desenho e pintura. Chamava-me de O Egípcio, por eu gostar de desenhar e pintar telas grandes. Era o Padre Anselmo.
Praticávamos esportes os mais diversos. Futebol, vôlei e basquete, os que mais apreciava. Nas piscinas nadávamos quase o dia inteiro, mas nunca fui grande amante de natação e muito menos exímio nadador - muito frio por lá.
Passeios
Passeávamos pelos matos da redondeza à procura de gabiroba e cabacinha, assim como de outras frutas do mato - nas férias de fim de ano essas frutas eram normais e fartas. Arrancávamos o pacheco (ou jucatupé, ou ainda jacatupé, ou até mandioca doce, como o chamam alguns); raiz de um pequeno arbusto bem diferente do pé de mandioca, mas de raiz bem parecida - muito apreciada por nós. Pegavam-se os animais encontrados - cobras, rãs ( jias), aranhas, jaratataca, tatus etc.. Os venenosos enviados para o Butantã em São Paulo. Alguns - rãs, tiús, gambás e tatus - consumidos e outros embalsamados para o pequeno museu. Nem todo aluno poderia pegar um animal encontrado - só alguns autorizados, eu entre eles.
Ao entardecer, acionava-se um pequeno motor a gasolina, funcionando com seu barulho característico, até o padre dar o último sinal com a campainha, para dormirmos; ainda hoje me vem à memória aquele bater dos pistões do pequeno motor.
Após o jantar, luz fraca, e só na casa. A varanda e o refeitório serviam de sala de recreio, onde jogávamos baralho e contávamos nossas histórias e estórias diárias e as saudosas de nossas casas e famílias, contávamos nossas potocas ( conversas fiadas). Os que comeram farinha, ou iriam comer, era um assunto comentado à surdina (comer farinha é o mesmo que sair ou ser mandado embora do seminário). Praticávamos alguns jogos, como o quebra-cabeça, a dama e o xadrez - havia até mesmo um bilhar – com bolas de marfim.
Rodeávamos o professor, misto de contador de histórias e companheiro naquela solidão. No lusco-fusco das lâmpadas e na escuridão total lá fora, quebrada apenas pelas luzes dos vagalumes e sonorizada pelos cricris de grilos vários e os incontáveis e variados coaxares de sapos e rãs – com sua orquestra harmônica quebravam a monotonia.
Contato com a civilização uma ou duas vezes por semana, quando por lá aparecia um carro.
As histórias
Padre Anselmo descrevia-nos os anos passados no seminário na Holanda, situado à beira de uma importante rodovia, justo no período da Segunda Guerra Mundial. Meninos e jovens, arrepiávamos os cabelos e arregalávamos os olhos diante da real e dramática descrição de dias e anos daquela guerra terrível - ouvíamos ávidos, sentindo calafrios.
Os que declaram, administram e comandam as guerras ficam em confortáveis gabinetes em seus países - no final, os heróis. Na verdade, os heróis ao longe: o povo morrendo nos combates ou em suas conseqüências. A história, uma fábula, ou, um relato tendencioso, sobre a qual poucos discordam.
O jovem seminarista Anselmo, magérrimo, depois de anos passando fome e sede, foi comunicado que a mãe estava prestes a falecer, no norte da Holanda. Desejava visitar a mãe. Os superiores arranjaram-lhe um passaporte - uma licença especial para viajar até onde se encontrava a mãe. Muito magro, magreza acentuada por ser muito alto. Imaginem-no durante a guerra, quando nem sempre tinha o que comer! Pois bem, ao chegar ao norte, todo mundo, admirado, olhava-o. Perguntou a um parente o porquê de tamanho assombro. Recebeu a explicação:- Você está muito gordo para nossos padrões atuais: somos um povo faminto e esquelético.
As árvores sem folhas e casca, arrancaram-se até mesmo capim e grama - serviram de alimento para o povo. Ratos, baratas, e todo e quaisquer insetos, disputados e comidos. Uma paisagem dantesca - desoladora e aterrorizadora... um deserto de terra úmida, esqueletos de árvores e de gente!
Os ovos
Um irmão do Padre Anselmo, perseguido pelos alemães, correu daqui, correu dali, entrou em um galpão, cheio de máquinas e alimentos - um antigo armazém. Encontrou um barril. Abriu-o. Pulou dentro e, imediatamente, puxou a tampa para encobri-lo... O barril, um depósito de ovos, com ovos pela metade. Só que... antigos e totalmente podres!
Imaginem todos aqueles ovos podres e quebrados por ele... e ele lá dentro sem poder abrir o barril. Os perseguidores, sentindo o odor, passaram rápido pelo local.
Preferiu o terrível cheiro, a ser morto pelos alemães.
Nunca tantos ovos lhe fizeram tão bem!... E podres!
A baioneta
O mesmo irmão do Padre Anselmo foi ao campo de batalha. Ferido, caiu numa poça de sangue, ao lado de um soldado que acabara de falecer, de quem ainda escorria sangue.
Chegou um soldado alemão, costume durante a guerra, para o tiro de misericórdia - um tiro em cada um dos mais feridos para que não sofressem muito, pois o socorro pouco e mal. O soldado olhava para o ferido, uma cutucada com a ponta da baioneta, e um bom ferimento. Se mexesse, sinal de vivo - tomava um tiro na cabeça. Se inerte, economizava-se o tiro.
Baioneta é uma arma branca que se adapta à boca de um fuzil ou mosquetão.
O irmão ferido, mas nem tanto, quando percebeu a aproximação do soldado alemão, fez-se de morto. A baioneta enfiada em um dos joelhos, quase lhe arranca a rótula. Retesou os músculos, controlou o gemido e o grito de dor - dor é sentida quando se tem a sensação de dor - não a tendo, ou se esforçando para não tê-la... O alemão, na pressa de acabar logo o serviço, no campo de batalha muitos feridos, passou para outro, pensando que aquele cliente realmente morrera.
Quem é o mocinho? Quem é o bandido?
Interessante que os alemães e, posteriormente os americanos, respeitavam muito o seminário e os seminaristas. De quando em vez os alemães faziam buscas totais pelo colégio, onde, muitas vezes, era possível proteger alguém que se escondia, principalmente judeus.
Quando os americanos entraram na Holanda avisaram aos holandeses para se abster de se manifestar, pois os inimigos fariam o mesmo, disfarçando-se e, com isso, poderiam atacá-los.
Em frente ao seminário havia um senhor, fazendeiro, muito amigo dos seminaristas. Estes, do interior do prédio, olhavam pelos vidros das janelas, observando os americanos e os tanques passarem. Apareceu o fazendeiro na varanda superior da casa e começou a pular com os braços abertos, externando toda a alegria pela presença dos americanos, antevendo o fim próximo da guerra. Um tanque americano virou-se em sua direção, disparando sobre ele e a linda casa um tremendo tiro de canhão - ele sumiu no enorme buraco que a bala fez na casa, quase a destruindo por completo.
Tiveram pouca coisa para enterrar do pobre e inocente fazendeiro.
Na guerra... quem é o mocinho e quem é o bandido?... O povo é o sofredor.
Isso é a guerra, tão bem narrada e dramatizada pelo inesquecível Padre Anselmo...
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