sábado, 26 de setembro de 2015

Procela em pó

(dema)


É noite de trevas.
Súbito, o apocalipse.
O céu por palco da anunciada procela.
Anjos mensageiros tocam as sete trombetas.
É fato, Zeus combate Cronos.
Quer vê-lo vomitar seus irmãos.
Dispara estrondos repetidos, medonhos,
com raios-flashes riscando direções no firmamento.
Dilatados, os olhos, a não mais,
a coruja pia no oco do coqueiro: credo!
Éolo entra na peleja e, com força brutal,
sopra sobre a terra.
Derruba postes e árvores, dobra palmeiras.
Esbravejante, urra sobre as casas,
sibila pelas frestas das janelas.
Oh, que deuses!
Geb quer cegar Nut, rainha do breu.
Em abundância, levanta o pó,
que o deus do vento deposita sobre o pátio.
Apavorado, Pedro, pega carona na quadriga de Ares
e zarpa, levando a chuva.
Por óbvio, sem água e sem luz,
não haverá arco-iris.
O cheiro de terra avoca espirros.
O suor, à vez, encharca lençóis.
Um estalo. A luz do corredor se apaga.
Por horas, agitam-se os espíritos da natureza.
Finalmente, adormeço.
Sonho grama molhada,
flores, pássaros.
De manhã, abro a janela:
o pátio branco tinto de um fofo marrom avermelhado.
Ao menos, o mundo ainda está.

sábado, 19 de setembro de 2015

Manhã de sábado

dema

É de manhã.
Sábado de sol e pardais.
No azul transparente de infinito,
raras e esparsas nuvens.
Uma brisa leve nina as folhas das palmeiras.
A piaba emerge em salto
e abocanha o incauto inseto.
Círculos de minúsculas ondas
se produzem no espelho d’água,
desenhando a percussão do fato.
O cão ressona à sombra,
enquanto, aqui, desejamos
que os corruptos se autodevorem.
Do outro lado, homens afogam crianças,
decepam cabeças,
tornam as cidades escombros,
matam-se no front.
Refugiados e migrantes no beco,
sem ida e sem volta.
Do mirante do universo,
Deus abre um largo sorriso e pensa:
que se fodam!

EM DEMASILVA

segunda-feira, 14 de setembro de 2015

Confissão (do ente)

dema

A vida toda te amei,
bem sabes,
posto que, fingindo, o negues.
Tua alma não mente.
A minha sente saudades,
doces e amargas lembranças
de um tempo distante, recente,
e até do porvir inda ausente.
Em sonhos a tive,
olhar meigo e terno,
lábios róseos,
úmidos, quentes;
respirar ofegante,
o beijo ardente;
sentir vazando dos poros
no agarro ao meu, inocente.
Em jaula, prendeste minh’alma,
o desejo de amar outra vez.
Quimera te fazes,
que, longe, presente te tornas
e meus líricos anseios devoras.
Com rédeas curtas me prendes,
me tanges, me tens
e impedes que eu viva
um amor diferente.
És meu concreto fado,
platônica felicidade,
meu doce e triste
viver carente.

em demasilva

sexta-feira, 11 de setembro de 2015

Meu traço


dema


Voltou-me o olhar de gato arisco
e moveu-se dois passos atrás.
Mediu-me novamente
e, a não me ver mais,
baixou a cabeça no aguardo.
O silêncio transmitia a mensagem de carinho
emitida por meu coração
àquele anjo meigo-medroso.
Leu-a de soslaio,
mas não arrefeceu.
Inconclusa, optou por dar meia volta,
Fechando a porta, ao sair.
Pasmo, de pé, permaneci.
Cruel, não cativante, assustador,
não sei...
Não faço,
não laço.
Quem sabe tão só me ame
- meu traço.


em demasilva

sábado, 5 de setembro de 2015

Hodierna barbárie

dema

Na encruzilhada do desespero,
a carência do abandonado
vê passar com pressa o foragido.
O expurgado atropela o medo do futuro,
enquanto a esperança do moribundo
sublima a dor da morte iminente.
Ouve-se, contínuo, o grito silencioso dos oprimidos,
recrudescido pela fome das crianças etíopes.
A intolerância xenofóbica compete acirradamente
com o ódio à paixão "unigenérica".
Na ampla circunscrição do entorno,
vicejam, em paisagem paradisíaca,
a ganância de poder,
a falsidade política
e a usurpação do patrimônio coletivo.
Célere, prospera, nesse ridículo universo,
a banalização da vida.
Aqui, inserto e submerso, sobrevivo em redoma própria,
onde ainda se vibra com a conquista,
se festeja a amizade,
se chora um amor perdido,
se rejubila pelo encontrado,
e se  faz sentir intensamente a saudade.