quinta-feira, 29 de março de 2012

Coisa

Não sei quem é o autor dessa coisa, mas sei que a coisa é boa de ler...
Ao que parece, o autor é Francicarlos Diniz. Teria sido publicado na Revista da Lìngua Portuguesa, ano I, n. l2, 2006




Coisa



A palavra "coisa" é um bombril do idioma. Tem mil e uma utilidades. É aquele tipo de termo-muleta ao qual a gente recorre sempre que nos faltam palavras para exprimir uma idéia. Coisas do português.

A natureza das coisas: gramaticalmente, "coisa" pode ser substantivo, adjetivo, advérbio. Também pode ser verbo: o Houaiss registra a forma "coisificar". E no Nordeste há "coisar": "Ô, seu coisinha, você já coisou aquela coisa que eu mandei você coisar?".

Coisar, em Portugal, equivale ao ato sexual, lembra Josué Machado. Já as "coisas" nordestinas são sinônimas dos órgãos genitais, registra o Aurélio. "E deixava-se possuir pelo amante, que lhe beijava os pés, as coisas, os seios" (Riacho Doce, José Lins do Rego). Na Paraíba e em Pernambuco, "coisa" também é cigarro de maconha..

Em Olinda, o bloco carnavalesco Segura a Coisa tem um baseado como símbolo em seu estandarte. Alceu Valença canta: "Segura a coisa com muito cuidado / Que eu chego já." E, como em Olinda sempre há bloco mirim equivalente ao de gente grande, há também o Segura a Coisinha.

Na literatura, a "coisa" é coisa antiga. Antiga, mas modernista: Oswald de Andrade escreveu a crônica O Coisa em 1943. A Coisa é título de romance de Stephen King. Simone de Beauvoir escreveu A Força das Coisas, e Michel Foucault, As Palavras e as Coisas.

Em Minas Gerais, todas as coisas são chamadas de trem. Menos o trem, que lá é chamado de "a coisa". A mãe está com a filha na estação, o trem se aproxima e ela diz: "Minha filha, pega os trem que lá vem a coisa!".

Devido lugar: "Olha que coisa mais linda, mais cheia de graça (...)". A garota de Ipanema era coisa de fechar o Rio de Janeiro. "Mas se ela voltar, se ela voltar / Que coisa linda / Que coisa louca." Coisas de Jobim e de Vinicius, que sabiam das coisas.

Sampa também tem dessas coisas (coisa de louco!), seja quando canta "Alguma coisa acontece no meu coração", de Caetano Veloso, ou quando vê o Show de Calouros, do Silvio Santos (que é coisa nossa).

Coisa não tem sexo: pode ser masculino ou feminino. Coisa-ruim é o capeta. Coisa boa é a Juliana Paes. Nunca vi coisa assim!

Coisa de cinema! A Coisa virou nome de filme de Hollywood, que tinha o seu Coisa no recente Quarteto Fantástico. Extraído dos quadrinhos, na TV o personagem ganhou também desenho animado, nos anos 70. E no programa Casseta e Planeta, Urgente!, Marcelo Madureira faz o personagem "Coisinha de Jesus".

Coisa também não tem tamanho. Na boca dos exagerados, "coisa nenhuma" vira "coisíssima". Mas a "coisa" tem história na MPB. No II Festival da Música Popular Brasileira, em 1966, estava na letra das duas vencedoras: Disparada, de Geraldo Vandré ("Prepare seu coração / Pras coisas que eu vou contar"), e A Banda, de Chico Buarque ("Pra ver a banda passar / Cantando coisas de amor"), que acabou de ser relançada num dos CDs triplos do compositor, que a Som Livre remasterizou. Naquele ano do festival, no entanto, a coisa tava preta (ou melhor, verde-oliva). E a turma da Jovem Guarda não tava nem aí com as coisas: "Coisa linda / Coisa que eu adoro".

Cheio das coisas. As mesmas coisas, Coisa bonita, Coisas do coração, Coisas que não se esquece, Diga-me coisas bonitas, Tem coisas que a gente não tira do coração. Todas essas coisas são títulos de canções interpretadas por Roberto Carlos, o "rei" das coisas. Como ele, uma geração da MPB era preocupada com as coisas.

Para Maria Bethânia, o diminutivo de coisa é uma questão de quantidade (afinal, "são tantas coisinhas miúdas"). Já para Beth Carvalho, é de carinho e intensidade ("ô coisinha tão bonitinha do pai"). ''Todas as Coisas e Eu'' é título de CD de Gal. "Esse papo já tá qualquer coisa... Já qualquer coisa doida dentro mexe." Essa coisa doida é uma citação da música Qualquer Coisa, de Caetano, que canta também: "Alguma coisa está fora da ordem."

Por essas e por outras, é preciso colocar cada coisa no devido lugar. Uma coisa de cada vez, é claro, pois uma coisa é uma coisa; outra coisa é outra coisa. E tal coisa, e coisa e tal. O cheio de coisas é o indivíduo chato, pleno de não-me-toques. O cheio das coisas, por sua vez, é o sujeito estribado. Gente fina é outra coisa. Para o pobre, a coisa está sempre feia: o salário-mínimo não dá pra coisa nenhuma.

A coisa pública não funciona no Brasil. Desde os tempos de Cabral. Político quando está na oposição é uma coisa, mas, quando assume o poder, a coisa muda de figura. Quando se elege, o eleitor pensa: "Agora a coisa vai." Coisa nenhuma! A coisa fica na mesma. Uma coisa é falar; outra é fazer. Coisa feia! O eleitor já está cheio dessas coisas!

Coisa à toa. Se você aceita qualquer coisa, logo se torna um coisa qualquer, um coisa-à-toa. Numa crítica feroz a esse estado de coisas, no poema Eu, Etiqueta, Drummond radicaliza: "Meu nome novo é coisa. Eu sou a coisa, coisamente." E, no verso do poeta, "coisa" vira "cousa".

Se as pessoas foram feitas para serem amadas e as coisas, para serem usadas, por que então nós amamos tanto as coisas e usamos tanto as pessoas?

Bote uma coisa na cabeça: as melhores coisas da vida não são coisas. Há coisas que o dinheiro não compra: paz, saúde, alegria e outras cositas más.

Mas, "deixemos de coisa, cuidemos da vida, senão chega a morte ou coisa parecida", cantarola Fagner em Canteiros, baseado no poema Marcha, de Cecília Meireles, uma coisa linda. Por isso, faça a coisa certa e não esqueça o grande mandamento: "amarás a Deus sobre todas as coisas".



ENTENDEU O ESPÍRITO DA COISA?

segunda-feira, 26 de março de 2012

Você partiu




dema

A despeito do amor que recebeu desde o nascer,
você partiu para longe
e para o mundo.
Quebrou os elos da presença e o bem-estar da paz.
Carregou na mochila nossa alegria,
nossos sonhos e esperança.
Levou, talvez, na mente, o anseio ou arroubo de liberdade,
o espírito de aventura e
algum ideal próprio, quem sabe...
ou a desoneração do compromisso.
Aqui, você nos deixou a sós,
nos engalfinhando com
a lembrança,
a tristeza,
a saudade,
a dor da perda.
Você partiu o nosso coração e fez converter-se em lágrimas
nossa dedicação, assim os abraços, os gestos de carinho, os afagos, os protestos de sucesso.
Você apenas não conseguiu aniquilar o nosso amor
e o desejo de sua felicidade.
...

domingo, 11 de março de 2012

A partida


dema

Onde o ar que lhe falta aos pulmões?
Onde seus pulmões a se intumescerem de ar para a vida?
Uma tarde-noite por demais estendida, de asfixia, de dor, de temor, de desesperança e de espera.
É a alma abandonando o corpo senil, putrefato.
São as memórias em ebulição no transe da despedida.
É a vida dizendo adeus à vida, sucumbindo-se à morte.
É a morte se apoderando do corpo e nele se instalando a exalar seu cheiro estranho, que me entranha as narinas, a circulação e a mente.
Seu polegar direito esfregando-se nos outros dedos, em gestos repetidos, como o tic-tac do relógio cronometrando o tempo para o desfecho.
Os olhos mirados na eternidade, subitamente fixos em mim, confirmam-me a verdade:
_ Meu filho, estou partindo.
De repente cessa a respiração ofegante.
Cristaliza-se o olhar sem uma lágrima...
Cerro-lhe as pálpebras e choro.


quinta-feira, 8 de março de 2012

ONDE VOCÊ MORA...


dema

O samba mora no morro,
O tango na Argentina.
Bolero pede socorro
Ao rock lá da esquina

A ilusão mora na lua,
A paixão no coração;
A aventura nas alturas,
Saudade na solidão.

Riqueza na falcatrua,
A pobreza no sertão;
Também lá no fim da rua,
Onde vive meu irmão.

A alegria vem da alma
Ou dos lábios da morena,
Que ao meu lado me acalma
E torna a vida mais amena.

O verde mora no mar,
O vermelho no inferno.
Vejo o azul do seu olhar
Da primavera ao inverno.

Diga-me onde você mora,
Que lhe faço um bom poema.
Dê carinho a quem lhe adora,
Dos demais nem tenha pena.

Conte-me onde a posso achar
E vou buscar sua ternura.
Meu amor, vou me jogar
Nos seus braços com loucura.

O amor transforma a vida,
A paixão o coração;
Mesmo a alma mais sofrida
Nele encontra solução.
...




CONIVÊNCIA


dema


Com carinho e cautela
amparo nas mãos em concha
o filhotinho
em queda de seu primeiro voo.
Num salto súbito,
inesperado,
com uma só patada,
o felino o arrebata
e devora.
Satisfeito, lambe-se e se afasta
levantando a volumosa cauda.
No chão, aos meus pés,
restam algumas penas espalhadas.